Os recreios, os intervalos, são o único factor absolutamente indispensável no sistema de ensino. Aliás, arriscando um tiro mais longo, pode dizer-se que são o único factor indispensável para termos uma vida (viva o ateísmo hedonista, caray!). Sendo esta uma verdade axiomática, não poderia deixar de recordar os meus Recreios nestas páginas de “literatuta” para dormir (com vénia ao prof. Fifi, vizinho de outro grande vulto da língua portuguesa, Douttore Callippo, que inventou a palavra “pinhales” quando tinha apenas 10 anos).
Os nossos recreios eram vulgares. Para uma Escola Masculina, claro está. Concursos de mijar longe, subida/descida acrobática voluntária ou sob ameaça, às árvores (o nosso recreio tinha pelo menos, que me recorde, 7 árvores!), jogo da apanhada gigante (todos a correr e a fugir e a apanhar e a correr... Todos, éramos para aí uns 80!), futeboladas já muito bem esgalhadas, calhoada na modalidade sniper ou combate aberto, resolução de duelos empolgantes (o Bigodes contra o Chico Faia, o Rui Mau contra o Teodoro...), aprender a dizer caralhadas com os mais velhos... Era uma vida ocupada e que reflectia a enorme energia física e mental que nós albergávamos.
Alguns dos acontecimentos vividos trazem-me a sensação das coisas inolvidáveis, daquelas que, mesmo carregadinho de Alzheimmer, agradeço que me recordem para eu me lembrar quem sou:
· O primeiro assalto organizado e condenação por associação criminosa: na altura em que o hype era “jogar aos cóbois”, o recreio dividia-se em índios e cóbois. Nós (que me recorde, o Ourx, o Vital, o Lippo, o Janita, o Mertolas, o Estrondoso, eu...) éramos dos índios. Um dia os cóbois chatearam-se connosco e acabou-se a brincadeira. Que fazemos, o que não fazemos... e alguém se chegou à frente com a ideia salvadora: – Boraí assaltar um rancho!
– Ia c’um caraças, ganda ideia!
Organizámo-nos, pusemos os lenços a tapar a boca e trepámos o muro que separava o recreio. A invasão foi maciça, barulhenta e suficientemente rápida para não sermos flagrados. Não houve vítimas mortais, uma vez que aquela era apenas uma acção de sensibilização, mas os patos e as galinhas cumpriram de forma histericamente irrepreensível o seu papel de seres de escalpe ameaçado. Quando entrámos na sala, findo o recreio, ainda com algumas penas presas na roupa (melhoravam o disfarce), o senhor professor perguntou se ninguém queria contar nada. Numa turma em que contar mais do que 1 já era um risco, ninguém deu passo nenhum para o abismo. Mas ele estava mesmo ali à nossa frente. “ – Então quem é que foram os engraçadinhos que foram ao quintal da D.Ernestina? – “ Silêncio pré-catastrófico e uns quantos rostos enrubescidos pela falta de patine no couro bem batido. Claro que a PIDE do sector Bairro Salazar (óbvio!) já tinha bufado tudo. As penas na roupa também não ajudaram. Aquilo que era o germinar de uma consciência multicultural e, quiçá, um prenúncio do 25 de Abril (estávamos em 1971), foi sumariamente resolvido a cachaço e estaladão pela força reaccionária do professor. Nessa altura, não só não pusemos nenhuma bomba como achámos que o professor até era capaz de ter um cochinho de razão. O que a ignorância faz ao proletariado...
· A propósito de bullying, na senda do confrade Ze Libanho, registo que a partir de dada altura, provavelmente pela discrepância etária e física, dois dos nossos colegas passaram a centralizar e a dominar todos os procedimentos decorrentes de um intervalo: gestão das merendas, da protecção e segurança pessoal, das trocas de cromos, do mercado de pregos, etc. O Rui Mau, de forma mais continuada, e o Martelo (o gajo nessa altura já naitava barbas de milho) de forma mais bipolar, controlavam tudo o que era fixe.
Foi tentando solucionar os problemas que eles colocavam que aprendi as primeiras luzes sobre economia e transacções: quem queria jogar à bola tinha que se encostar à parede, alinhado com os outros candidatos, com a merenda na mão. O Rui Mau, engalanado no seu porte físico e na força do branding, ia indagando os recheios: “ – O que é que trazes? – Manteiga. – Tu jogas!” E sacava-lhe o pão. “ – Tu aí, ó lingrinhas, o qu’é que tens? – Tulicreme. – ‘Tá bem, também jogas. E tu, ó caixa d’óculos (eu)? – Marmelada! – Marmelada é merda!” E sacava-me o pão, atirava-o para o chão e eu ia para uma borda ver o pessoal a jogar. Sem depressões.
Mas um dia a minha costela de Oliveira e Costa retiniu. O pão ia carregadinho de marmelada, só que no bolso ia o antídoto: um brinde do bolo-rei. Uma bruta águia real, irresistível para qualquer pessoa de bom-gosto e que acreditasse no valor das coisas brilhantes (índios, pretos, Manuel Pinho...). Na hora da inspecção diária, ainda antes que ele me pudesse sacar o pão e espezinhá-lo, guinchei: “ – É marmelada, mas tenho isto aqui!” E apresentei-lhe a jóia alada como se estivesse com um crucifixo em frente a um vampiro. Ele sacou (era o seu verbo preferido) o brinde da minha mão, examinou-o e emitiu um prometedor “ – Porreiro, pá!” (Onde é que eu já ouvi isto? Eh pá, não me digas que o Rui Mau é o Sócrates! Com as Novas Oportunidades e tal... O Emplastro também é filho do Pinto da Costa!)
Estava eu já a afiar a moca para ir jogar à bola e ainda por cima comer a merenda, quando o cabrão do Lucas diz ao Rui: “ – Mas tu és do Sporting!”. Jogo abaixo! Fiquei sem o brinde, sem o pão e sem jogar. Foi a partir daquele dia que decidi que ia ser do Benfica para sempre.
· Naquele tempo a América era para nós tão longínqua e depositária de maravilhas, como é hoje o Nirvana ou 100 milhões de euros na conta. Já era uma sorte do caraças poder ver a América na televisão, imagine-se o que seria ir lá. Quando o nosso excelso amigo C (Tio Ho? Descose-te lá, man!) comunicou à maralha que: a) ia andar de avião; b) ia à América, passados os primeiros momentos de sincera inveja e pragas conformes (sortudo do caralho! ganda vaca! fosga-se, mesmo à América?), apressámo-nos a escrever as listas do material pretendido (essencialmente bélico; Escola Masculina, né?).
Ele foi e a espera foi sonhada todos os dias, encastelando os prodígios que o C iria trazer. E veio. E trouxe diversas maravilhas. Para o que nos interessa, uma fundamental: uma bola de futebol americano. “ – Espectáculo! Ia pá! Como é que se joga com isto?”, perguntávamos nós, já na cauda da Europa. “ – Eh pá, isto é com’ó futebol, só que sem chutos. O pessoal apanha a bola e tem que a passar logo, não dá para fazer fintas, porque se não a largar rápido a gente pode cair-lhe em cima. – Fixe! Bora lá jogar!”
E fomos. Como já disse éramos para aí uns 80. Nesses 80 havia alguns gordos, alguns burros e alguns copos-de-leite (o que as nomenclaturas mudam), que eram utilizados quando necessário e marginalizados quando havia algo de interessante. O Jacinto era um dos copos-de-leite. Raramente procurava brincar com a turba e nós esquecíamo-nos piedosamente dele. Ora nesse memorável dia de Superbowl, o Jacinto, frágil e recatadamente abrigou-se junto à porta de entrada para o interior da escola. O C, como dono da bola, teve direito a iniciar o jogo: dois passos antes de se livrar desesperadamente dela face ao avanço do pack adversário (todos os outros); a meloa voadora foi ter com o Alvarez, que a agarrou, virou-se para trás e desfez-se da oval numa hipérbole perfeita e sibilante direitinha às têmporas do Jacinto, o qual caiu redondo e inanimado. A Menina Angélica reanimou-o, tratou-lhe da ferida, e nós, desiludidos por não ter sido preciso chamar a ambulância, regressámos à aula prescientes do sermão. Castigo geral e oval confiscada até final do ano. Depois do professor a devolver não voltámos a jogar: andavam a dar “Os Pequenos Vagabundos” na TV e descobríramos que a irmã do Raúl tinha pelos na crica.
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