“Uma infância feliz dura a vida inteira” é uma frase que repito profusamente, nas aulas, em casa, sempre. Veio-me mais uma vez à boca ao ler o comentário do meu querido amigo PM (abração, man) denunciando a brancura da minha bata na Escola Primária Masculina Nº3. Já agora, o facto de estar à frente tinha a ver com o facto de ser cegueta como uma toupeira. Pode assim dizer-se que foi a miopia que me transformou no “marrão” da turma e me desviou da pré-delinquência em que todos os outros já marinavam.
A minha infância foi inaugurada em Lisboa, mas tirando uma queda de um 1º andar para espreitar a Lambretta de uma vizinha (acho que estava apaixonado pela vizinha e não pela mota), queda essa que me permitiu partir os dentes pela 1ª vez, não me recordo de quase mais nada dos meus primeiros anos de vida.
Assim, posso dizer que a minha infância, aquela que eu guardo, começou no 1º dia de escola. Todos de batinha imaculadamente branca e monogramada, penteadinhos e a estrear sapatos novos, acompanhados das respectivas progenitoras, conduzidos pela menina Angélica, íamos entrando mais ou menos receosos numa sala de aula que, aos 6 anos, me pareceu enorme. O senhor professor (na altura as pessoas tratavam-se por extenso, não havia cá modernices nem abreviaturas), imponente, voz rija, explicava-nos que a nossa vida passaria, a partir daquele momento, a ser governada pela Carolina: uma régua de mogno, com diversos entalhes relativos às vítimas abatidas, com cerca de 50 cm de comprimento por 3 de espessura e 2 kg de peso. Os critérios de avaliação foram-nos muito bem explicados: quem der mais de 2 erros no ditado tem um spanking date com a Carolina; quem errar nas contas, pagará o prejuízo com as palmas das mãos; quem mijar fora do penico, arrisca-se a conhecer todo o arsenal do senhor professor: a já citada Carolina, uma cana de longo alcance, a pinça de orelhas e o poderoso estaladão de mão aberta. Foi nesta altura que o Palminhas se mijou todo pela primeira vez.
Passados os primeiros dias de recruta, rapidamente aprendemos que viver na escola podia ser tão divertido como tudo o que fizéramos antes. E aprendemos imenso. Principalmente nos recreios e nos percursos casa-escola-casa. A parte pedagógica resume-se em poucos acontecimentos: apresentação dos TPC – distribuição de penas; cópia com desenho – mais umas estaladas e uns puxões de orelhas; ditado – 45 minutos de reguadas (havia pessoal que tinha mais de 50 erros por ditado; ora, 48 reguadas x 20 segundos por cada uma... bem, é fazer as contas); recreio (capítulo à parte); aritmética – mais porradinha; procedimento para a saída: cana por cima das orelhas e resposta rápida à questão, “8 x 6 ? Haa... 77!”, tau! “Ficas aí, que eu já cá venho outra vez”. E nós a vermos o pessoal que acertava a bazar, esperando que as 13h chegassem depressa e que o professor estivesse com fome. Tirando isto, pouco mais havia de relevante, a não ser as Provas (com factores adicionais de stress, como o manejo de uma caneta de tinta permanente e a gestão dos borrões), o termos que cantar músicas do Festival para podermos sair mais cedo (foi aí que se revelaram talentos como o Nogueira – mas esse já era irmão da Pandeireta, era genético – o Silvério – que tinha a melhor interpretação do Calhambeque – e o Rivotti, que iniciou aí a sua carreira artística.
Ainda dentro da sala de aula, alguns episódios merecem referência, pela sua relevância para o processo ensino-aprendizagem:
· a criatividade no uso dos materiais. O Rui Fafia “– Oh esnhor prufxor, poxir à cccasa de vanho, faaxavor?” O professor: “ – Faz na bota.” E o Rui, que talvez trouxesse os botins de borracha por causa disso, depois de sacudir a última gota, retomava: “ – Xástá! Poxir espejar?”
· As desculpas do Chiba para os proverbiais atrasos. “Fui ao leite!”, utilizada 346 vezes. “Fui ao pão!”, utilizada 2 vezes.
· As bolachinhas que o Janita levava para distribuir pelo people enquanto os cristãos eram sacrificados no estrado.
· Os planos do Diamantino para chegar à França de patins.
· As demonstrações de carinho do Marreco pelo professor: “senhor professor querido, não me bata mais.”
· As sessões de dinamização da leitura promovidas pelo Martelo: revista porno numa mão, cenaita na outra, o professor a chegar-se por trás dele e a agarrá-lo pelos fundilhos arrastando-o até ao cadafalso.
De todo o modo, balanço feito, penso não faltar à verdade reconhecendo que tivemos um grande professor, que nos ensinou bem, que sempre sentimos como justo, mais do que justiceiro, e que, apesar da facilidade com que transformava a nossa ignorância em consequências físicas, não nos deixou outras marcas para além do profundo respeito e boa memória.
Até jazz, para próximos capítulos.
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