Sapatilhas de Corrida
Os domingos, para além de serem o dia do Senhor, tinham valor acrescido para nós: havia sempre bué de excursões que desaguavam ali junto ao Pelourinho e à capela do Gregório. Excursões, representavam garinas novas e desconhecidas e isso era algo de imperdível numa cidade de província. Assim, depois de tomarmos café no Sta Iria, e acordar o Manel d’ Avó com gritos de “GOLO!”, vínhamos andando Ponte Velha (Amen!) abaixo, farejando tudo o que fosse sexo feminino e não fugisse quando nos via.
Duas brunas à nossa frente, com risinhos de primavera. “Eia men, ganda cagueiro! Vai lá ver se a cara é fixe”. O Juka, com aquela pose de cavalheiro a Viagra, passa-lhes à frente e começa a falar italiano com elas. Vira-se para nós e faz-nos uma careta tipo “se puseres vinagre e muito sal, escapa”. O Fak’s, galante e decidido a dar uma oportunidade às ganduias, manda uma babouge: “Chuchus, but’aí curtir c’ pessoal, minhas!” Elas voltam-se para trás, vêm a pandilha já com baba nos dentes e arriscam um desconfiado “olha, tem a mania que é parvo!” O Fak’s, educadamente, para não ferir susceptibilidades, rosnou “e tu parece que engoliste um saco de treps!”. Apesar do seu cuidado, a menina sentiu-se ofendida e respondeu-lhe. “Isso és tu!”
Dez ou quinze gargalhadas depois, o Bazinho detectou um grupo de borboletas com ar de precisarem de guia turístico. “Olá princesas! Então e tal, és daonde e não sei quê? Vocês são muita fixes! Quando é que se vão embora? Podemos ir com vocês e tal? Dás-me a tua morada? Queres vir ali ver uma cena fixe no jardim?” O Bazinho tinha sempre que dizer, “queres que te compre um geladito?”, o que raramente ajudava.
Mas naquele dia as brunas até estavam a dar bola ao pessoal. Fomos acompanhando as nitas até ao autocarro, e elas sempre a derramar dengo. Entraram lá para dentro para nos darem os números de telefone, e o Juka e o Bazinho seguiram-nas para ver se havia mais brunas e tal. Mas aquilo correu mal. As mulas mudaram de atitude e queixaram-se de que as estávamos a molestar. O Juka (calm’aí ó mister!) e o Bazinho foram expulsos à má fila por um cota latagão com uma espécie de taco na mão. “Baza men, as fatelas quilharam-nos!”
Éramos jovens e lidávamos mal com a frustração, principalmente o Juka que era o mais velho. “Putanas! Coglione! Vendetta! Per’aí que eu já os fodo! Pessoal, vamos fazer uma vaquinha para comprar uns ovos e atirá-los aos cabrões!” “Ya men, ganda ideia caroço! Tom’aí 10 paus.” Lugar de Frutas, uma dúzia de ovos faxavor. O olhar desconfiado da senhora que nos vendeu os ovos não conseguiu adivinhar o drama que se desenrolaria à frente do pacato estabelecimento.
Com a tensão própria dos grandes golpes, aguardámos pacientemente que o alvo se apresentasse a jeito. Todos tínhamos ovos na mão, mas antes de qualquer um, o Juka saltou para o meio da estrada, fez alto com o braço, vociferou mais uma italianice e, tchrraap! Bruta escarradela de albumina, casca e gema mesmo no meio do pára-brisas do autocarro. Durante uns segundos, o tempo como que parou naquele quadro, tendo o Bazinho aproveitado para mandar também o seu ovo contra as janelas do machimbombo. Acordámos do transe com a buzinadela do autocarro e a porta a abrir-se e a mostrar a ponta do pau do cabrão.
“Eia c’um catano! Baza men, corre caroço!” Como era domingo, esquecemo-nos de uma parte importante do plano: a retirada. Atrás daquele que partiu primeiro, arrancámos a speedar pela Rua do Camarão acima, virámos à esquerda e depois na primeira à direita. Direitinhos à PSP. “Men, trava! Disfarça, caralho!” O inga que pachorrentava à porta da esquadra despertou levemente do torpor mas não se surpreendeu com o nosso ar esbaforido e paranóico, “... Puf, puf... Boa tarde xô guarda!” Só quando viu o troglodita com o pau na mão lá ao fundo, a chamar-nos coisas doces, é que percebeu que os putos deviam ter armado alguma. Mas era domingo, à tarde, solinho e tal. No problema, man.
Quando ele decidiu que tinha que fazer a sua parte, e arrancou pastelosamente em nossa perseguição, deparou-se-nos um espaço no qual se estava a fazer uma obra e que tinha um talude de madeira para aí com uns 10 metros de altura! (isto era o que eu diria se fosse o Lipinho, que é pescador) Pronto, vá lá, p’raí uns 2,5m. Mas mesmo que tivesse 10, com o gás com que nós íamos, treparíamos sempre aquela cena, porque o medo era o Red Bull da época. Batido o recorde mundial de salto colectivo em altura, ficámos só a mais uma escalada da estrada do Castelo, a salvação. Aquele era um território bem conhecido por nós, com todos os esconderijos e passagens secretas cartografados por dias e dias de exploração e desbunda. Embrenhámo-nos pelos atalhos e escondemo-nos na Moita da Curva, na estradinha antiga que ia lá para cima. O carro da Nívea ainda passou para cima, depois para baixo, mas a não ser a nuvem de fumo que saía da moita, nada revelava a nossa presença.
Já relaxados e refeitos do esforço, confiantes de que os burgessos já teriam regressado à santa terrinha, descemos de novo à cidade, para terminar a caçada dominical. Por essa altura tínhamos regressado há pouco tempo de Torremolinos. O Juka tinha trazido umas Adidas altamente, azulinhas e riscas laranja, e andava todo vaidoso em cima delas. Estava sempre a gabá-las:
– São bué de confortáveis mens. São impermeáveis. Têm uma sola especial antiderrapante e esta grossura aqui, tázaver? Dá bué de implulso nos saltos!
– Ya men, eu digo á gorda...
– Djô, se são assim tão boas salta lá aqui a vala do Hotel de um lado para o outro!
– Ya, mostra lá a cena! Vá lá men, tu consegues! - Diga-se que o Juka não era muito musculoso, mas era extremamente rápido e ágil.
– Então, caroço! Não me digas que tens medo que as sapatilhas não aguentem... Vá lá, men, não sejas pé-de-salsa.
O Juka, confiante (afinal a vala tinha apenas uns 2 ou 3 metros da largura; quem subia candeeiros como ele não tinha nada a recear), aceitou o desafio: “Pindéricos! Já vão ver o que é potência e segurança. La maraviglia de la tecnologia alemana, echo sfragate!” Concentrou-se com aquelas gargalhadinhas tipo Juka (“MhééêÊ! HmêÊéé!), tomou balanço e arrancou decidido como um corta-relva. À medida que via o abismo a aproximar-se a hesitação tomou-lhe conta do computador de bordo, o ABS desligou-se, e no esforço desesperado de travagem as bellíssimas Adidas foram deslizando estilosamente pela relva, direitinhas à água com o Juka agarrado.
– Wow! Men, altamente! Faz lá a cena outra vez! Alta moca de sapatilhas, djô.
Passámos o resto da tarde sentados num banco do jardim do coreto, a comer gelados (Rajá), observando as pessoas a terminar o seu passeio de domingo chocadas com o quadro montado pelo Juka uns bons metros afastado de nós: de cócoras nas costas do banco em pose de pensador, só com as cuecas, com toda a roupinha e as fulgentes sapatilhas estendidas na base da palmeira, enquanto ia resmoneando pragas em italiano.
Após mais um domingo passado, outra verdade se nos havia revelado (como é que nós não havemos de ser espertos! Com tantas revelações somos quase santos...): a tecnologia é o olho do cu da ciência.
Imagens palmadas daqui. Visitem!
Duas brunas à nossa frente, com risinhos de primavera. “Eia men, ganda cagueiro! Vai lá ver se a cara é fixe”. O Juka, com aquela pose de cavalheiro a Viagra, passa-lhes à frente e começa a falar italiano com elas. Vira-se para nós e faz-nos uma careta tipo “se puseres vinagre e muito sal, escapa”. O Fak’s, galante e decidido a dar uma oportunidade às ganduias, manda uma babouge: “Chuchus, but’aí curtir c’ pessoal, minhas!” Elas voltam-se para trás, vêm a pandilha já com baba nos dentes e arriscam um desconfiado “olha, tem a mania que é parvo!” O Fak’s, educadamente, para não ferir susceptibilidades, rosnou “e tu parece que engoliste um saco de treps!”. Apesar do seu cuidado, a menina sentiu-se ofendida e respondeu-lhe. “Isso és tu!”
Dez ou quinze gargalhadas depois, o Bazinho detectou um grupo de borboletas com ar de precisarem de guia turístico. “Olá princesas! Então e tal, és daonde e não sei quê? Vocês são muita fixes! Quando é que se vão embora? Podemos ir com vocês e tal? Dás-me a tua morada? Queres vir ali ver uma cena fixe no jardim?” O Bazinho tinha sempre que dizer, “queres que te compre um geladito?”, o que raramente ajudava.
Mas naquele dia as brunas até estavam a dar bola ao pessoal. Fomos acompanhando as nitas até ao autocarro, e elas sempre a derramar dengo. Entraram lá para dentro para nos darem os números de telefone, e o Juka e o Bazinho seguiram-nas para ver se havia mais brunas e tal. Mas aquilo correu mal. As mulas mudaram de atitude e queixaram-se de que as estávamos a molestar. O Juka (calm’aí ó mister!) e o Bazinho foram expulsos à má fila por um cota latagão com uma espécie de taco na mão. “Baza men, as fatelas quilharam-nos!”
Éramos jovens e lidávamos mal com a frustração, principalmente o Juka que era o mais velho. “Putanas! Coglione! Vendetta! Per’aí que eu já os fodo! Pessoal, vamos fazer uma vaquinha para comprar uns ovos e atirá-los aos cabrões!” “Ya men, ganda ideia caroço! Tom’aí 10 paus.” Lugar de Frutas, uma dúzia de ovos faxavor. O olhar desconfiado da senhora que nos vendeu os ovos não conseguiu adivinhar o drama que se desenrolaria à frente do pacato estabelecimento.
Com a tensão própria dos grandes golpes, aguardámos pacientemente que o alvo se apresentasse a jeito. Todos tínhamos ovos na mão, mas antes de qualquer um, o Juka saltou para o meio da estrada, fez alto com o braço, vociferou mais uma italianice e, tchrraap! Bruta escarradela de albumina, casca e gema mesmo no meio do pára-brisas do autocarro. Durante uns segundos, o tempo como que parou naquele quadro, tendo o Bazinho aproveitado para mandar também o seu ovo contra as janelas do machimbombo. Acordámos do transe com a buzinadela do autocarro e a porta a abrir-se e a mostrar a ponta do pau do cabrão.
“Eia c’um catano! Baza men, corre caroço!” Como era domingo, esquecemo-nos de uma parte importante do plano: a retirada. Atrás daquele que partiu primeiro, arrancámos a speedar pela Rua do Camarão acima, virámos à esquerda e depois na primeira à direita. Direitinhos à PSP. “Men, trava! Disfarça, caralho!” O inga que pachorrentava à porta da esquadra despertou levemente do torpor mas não se surpreendeu com o nosso ar esbaforido e paranóico, “... Puf, puf... Boa tarde xô guarda!” Só quando viu o troglodita com o pau na mão lá ao fundo, a chamar-nos coisas doces, é que percebeu que os putos deviam ter armado alguma. Mas era domingo, à tarde, solinho e tal. No problema, man.
Quando ele decidiu que tinha que fazer a sua parte, e arrancou pastelosamente em nossa perseguição, deparou-se-nos um espaço no qual se estava a fazer uma obra e que tinha um talude de madeira para aí com uns 10 metros de altura! (isto era o que eu diria se fosse o Lipinho, que é pescador) Pronto, vá lá, p’raí uns 2,5m. Mas mesmo que tivesse 10, com o gás com que nós íamos, treparíamos sempre aquela cena, porque o medo era o Red Bull da época. Batido o recorde mundial de salto colectivo em altura, ficámos só a mais uma escalada da estrada do Castelo, a salvação. Aquele era um território bem conhecido por nós, com todos os esconderijos e passagens secretas cartografados por dias e dias de exploração e desbunda. Embrenhámo-nos pelos atalhos e escondemo-nos na Moita da Curva, na estradinha antiga que ia lá para cima. O carro da Nívea ainda passou para cima, depois para baixo, mas a não ser a nuvem de fumo que saía da moita, nada revelava a nossa presença.
Já relaxados e refeitos do esforço, confiantes de que os burgessos já teriam regressado à santa terrinha, descemos de novo à cidade, para terminar a caçada dominical. Por essa altura tínhamos regressado há pouco tempo de Torremolinos. O Juka tinha trazido umas Adidas altamente, azulinhas e riscas laranja, e andava todo vaidoso em cima delas. Estava sempre a gabá-las:
– São bué de confortáveis mens. São impermeáveis. Têm uma sola especial antiderrapante e esta grossura aqui, tázaver? Dá bué de implulso nos saltos!
– Ya men, eu digo á gorda...
– Djô, se são assim tão boas salta lá aqui a vala do Hotel de um lado para o outro!
– Ya, mostra lá a cena! Vá lá men, tu consegues! - Diga-se que o Juka não era muito musculoso, mas era extremamente rápido e ágil.
– Então, caroço! Não me digas que tens medo que as sapatilhas não aguentem... Vá lá, men, não sejas pé-de-salsa.
O Juka, confiante (afinal a vala tinha apenas uns 2 ou 3 metros da largura; quem subia candeeiros como ele não tinha nada a recear), aceitou o desafio: “Pindéricos! Já vão ver o que é potência e segurança. La maraviglia de la tecnologia alemana, echo sfragate!” Concentrou-se com aquelas gargalhadinhas tipo Juka (“MhééêÊ! HmêÊéé!), tomou balanço e arrancou decidido como um corta-relva. À medida que via o abismo a aproximar-se a hesitação tomou-lhe conta do computador de bordo, o ABS desligou-se, e no esforço desesperado de travagem as bellíssimas Adidas foram deslizando estilosamente pela relva, direitinhas à água com o Juka agarrado.
– Wow! Men, altamente! Faz lá a cena outra vez! Alta moca de sapatilhas, djô.
Passámos o resto da tarde sentados num banco do jardim do coreto, a comer gelados (Rajá), observando as pessoas a terminar o seu passeio de domingo chocadas com o quadro montado pelo Juka uns bons metros afastado de nós: de cócoras nas costas do banco em pose de pensador, só com as cuecas, com toda a roupinha e as fulgentes sapatilhas estendidas na base da palmeira, enquanto ia resmoneando pragas em italiano.
Após mais um domingo passado, outra verdade se nos havia revelado (como é que nós não havemos de ser espertos! Com tantas revelações somos quase santos...): a tecnologia é o olho do cu da ciência.
Imagens palmadas daqui. Visitem!
Memória de elefante!!!! Grandes recordações ... não te esqueces de nada Marinho!!!